10.11.15

Uma aventura na Praça das Flores

Estava sentada num banquinho da Praça das Flores, a beber o meu café e a ler o meu vício, quando fui arrancada à leitura por um eco de apupos: «buuuuuuuu! buuuuuuu!»

Buuuu? Estranhamente, os apupos pareciam irromper, não dos baloiços do parque infantil, mas da esplanada do Pão de Canela. Semicerrei os olhos, invocando o poder da visão. E então vi. Era o João Soares. O João Soares queria sentar-se na esplanada do Pão de Canela. Mas os manifestantes-de-esplanada não iam permiti-lo. Não é qualquer animal que pode comer esta tosta de queijo de cabra, mel e nozes por 7€. Chega para lá.

Rapidamente, os apupos foram substituídos por palavras de ordem. As palavras de ordem são sempre iguais, por isso não me levarão a mal que não as tenha entendido com clareza ("não-sei-quem para a rua, não-sei-quê-não-sei-quê-ua") - mais importante foi notar com agrado que os apoiantes da direita portuguesa as tinham descoberto. Nunca é tarde para se aprender a manifestar o nosso desagrado. Roubaram-nos o poleiro! Aquele que é nosso por direito! O mundo precisa de sabê-lo.

Geograficamente, o Pão de Canela fica num extremo da Praça. Eu estava sensivelmente a meio. No outro extremo, ficava uma outra esplanada, que, para minha surpresa, quis fazer-lhe concorrência. «LADRÃO! GOLPISTA!», ouviu-se da ala dos Refrescos. Em segundos, estas palavras pertenciam a todas as bocas do mundo. O pequeno mundo dos queques da Praça das Flores.

Os gritos foram iniciados por um grupo de adolescentes rapazes, com não mais do que 15, 16 anos. Depois de 3 ou 4 cânticos a peito aberto: «GOLPISTA! LADRÃO!», correram para o João Soares. Eram crianças, e riam como crianças, excitadas por poderem, finalmente, participar numa festa popular.

Mas a luta não se ficou pelas esplanadas. Um jovem adulto, sentado num banco ao meu lado, teve de segurar a senhora-avó pelas pernas, enquanto esta repetia as brincadeiras dos sobrinhos que nunca vira na vida: «Ladrão! Golpista!», e etc. O João Soares foi-se embora, a vida de esplanada teve de ficar para outro dia.

E eu, daqui em diante, sempre que estiver entediada, vou lembrar-me da vossa fúria. Da vossa dificuldade em compreender o que se passa. Em reconhecer a sua legitimidade democrática. Em perceber que não, não foram roubados de nada. Que não, que nada era vosso por "direito". Ou mesmo por defeito. E então vou sorrir. E vai ser awesome.