29.6.17

O Horácio

Entre a cidade de Roma e a cidade de Alba
Havia uma contenda pela dominação. Frente aos beligerantes
Encontravam-se armados, poderosos, os etruscos.
A fim de resolverem a contenda antes do ataque iminente
Colocaram-se frente a frente em ordem de batalha
Aqueles que um perigo comum ameaçava. Os chefes dos exércitos
Colocaram-se cada um à frente do seu exército e disseram
Um ao outro: porque a batalha enfraquece
Vencedores e vencidos, tiremos à sorte
Para que um homem combata pela nossa cidade
Contra outro homem, combatendo pela vossa cidade
Poupando os outros para o inimigo comum.
E os exércitos bateram com as espadas contra os escudos
Em sinal de aprovação e a sorte foi decidida.
A sorte chamou a combater
Por Roma um horácio, por Alba um curiácio.
O curiácio estava noivo da irmã do horácio
E horácio e curiácio
Foram interrogados cada um pelo seu exército:
Ele está/tu estás noivo da tua/sua irmã. Deve tirar-se
À sorte mais uma vez?
E o horácio e o curiácio disseram: Não
E lutaram entre as filas dos exércitos
E o horácio feriu o curiácio
E o curiácio disse com uma voz que se desvanecia:
Poupa o vencido. Eu estou
Noivo da tua irmã.
E o horácio gritou:
A minha noiva chama-se Roma
E o horácio enfiou a espada
Na garganta do curiácio e o sangue jorrou sobre a terra.
Quando para Roma voltou o horácio
Em cima dos escudos das tropas imunes
Ao ombro com a túnica
Do curiácio que matara
À cintura a espada-troféu, na mão a sua ensanguentada,
Vieram ao seu encontro pela porta Este
Com um passo rápido a sua irmã e atrás dela
O velho pai, lentamente
E o vencedor saltou dos escudos, por entre o júbilo do povo
Para receber o abraço da irmã.
Mas a irmã reconheceu a túnica ensanguentada
Trabalho de suas mãos, e gritou e desfez os cabelos.
E o horácio injuriou a irmã enlutada:
Porque é que gritas e desfazes os cabelos?
Roma venceu. Diante de ti está o vencedor.
E a irmã beijou a túnica ensanguentada e gritou:
Roma.
Devolve-me o que estava nestas vestes.
E o horácio, tendo no braço ainda o movimento da espada
Com que matara o curiácio
Por quem a irmã agora chorava
Enfiou a espada onde o sangue daquele que era chorado
Ainda não secara
No peito daquela que chorava
E o sangue jorrou sobre a terra. Ele disse:
Vai juntar-te àquele que amas mais do que a Roma.
E o mesmo a toda a romana
Que chorar o inimigo.
E ele mostrou a espada duplamente ensanguentada a todos os romanos
E o júbilo emudeceu. Apenas das últimas filas
Da multidão espectadora se ouviam ainda
Gritos e vivas. Aí ainda não era conhecida
A monstruosidade. Quando no silêncio do povo o pai
Se aproximou dos filhos
Já só tinha um filho. Ele disse:
Mataste a tua irmã.
E o horácio não escondeu a espada duplamente ensanguentada
E o pai do horácio
Olhou a espada duplamente ensanguentada e disse:
Venceste. Roma
Reina sobre Alba.
Ele chorou a filha, o rosto coberto
Estendeu sobre a sua ferida a túnica
Obra de suas mãos, ensanguentada pela mesma espada
E abraçou o vencedor.
Para o horácio então
Avançaram os lictores, romperam com o molho de varas e machado
O abraço, ao vencedor tiraram da
Cintura a espada-troféu e ao assassino da mão a sua duplamente ensanguentada.
E de entre os romanos um gritou:
Ele venceu. Roma
Reina sobre Alba.
E de entre os romanos um outro replicou:
Ele matou a irmã.
E os romanos gritaram uns contra os outros:
Honrai o vencedor.
Executai o assassino.
E romanos pegaram na espada contra romanos disputando
Se o horácio como vencedor devia ser honrado
Ou ser julgado como assassino.
Os lictores
Separaram os litigiosos com o molho de varas e machado
E convocaram o povo em assembleia
E o povo designou de entre si dois
Para deliberarem sobre o horácio
E entregou em mão a um
Os louros para o vencedor
E ao outro o machado da justiça, destinado ao assassino
E o horácio encontrava-se
Entre os louros e o machado.
Mas o pai pôs-se ao lado dele
O primeiro a perder e disse:
Espectáculo ignóbil que o próprio albano
Não veria sem vergonha.
Junto à cidade encontram-se os etruscos
E Roma quebra a sua melhor espada.
Vós inquietais-vos.
Roma é a vossa inquietação.
E alguém de entre os romanos respondeu-lhe:
Roma tem muitas espadas.
Nenhum romano
É menos do que Roma ou então Roma não é.
E de entre os romanos um outro disse
E indicou com os dedos a direcção do inimigo:
Duplamente poderoso
É o etrusco, se Roma está desunida
Por opiniões divergentes
Neste julgamento inoportuno.
E o primeiro justificou assim a sua opinião:
A discussão que não tem lugar
Dificulta o braço armado com a espada.
O dilema dissimulado
Enfraquece a fileira de batalha.
E os lictores romperam pela segunda vez
O abraço dos horácios, e os romanos armaram-se
Cada um com a sua espada.
Aquele que segurava os louros e aquele que segurava o machado
Cada um com a sua espada, de tal modo que agora a esquerda
Segurava os louros ou o machado e a direita
A espada. Os próprios lictores
Depuseram por um curto instante
As insígnias da função e enfiaram
No cinturão cada um a sua espada e de novo
Seguravam na mão o molho de varas e machado
E o horácio curvou-se
Para a espada, a ensanguentada, que jazia na poeira. Mas os lictores
Impediram-no com o molho de varas e machado
E o pai do horácio pegou na espada e foi também
Levantar com a esquerda a ensanguentada
Do vencedor que era um assassino
E os lictores impediram-no disso também
E as sentinelas foram reforçadas nas quatro portas
E o julgamento prosseguiu
À espera do inimigo.
E aquele que levava os louros disse:
O seu mérito apaga a sua culpa.
E aquele que levava o machado disse:
A sua culpa apaga o seu mérito.
E aquele que levava os louros perguntou:
O vencedor deverá ser julgado?
E aquele que levava o machado perguntou:
O assassino deverá ser honrado?
E aquele que levava os louros disse:
Se o assassino for julgado
O vencedor será julgado.
E aquele que levava o machado disse:
Se o vencedor for honrado
O assassino será honrado.
E o povo olhou para o autor indivisível e uno
Destes actos diversos e guardou silêncio.
E aquele que levava os louros e aquele que levava o machado perguntaram:
Se uma coisa não pode ser feita
Sem a outra que a anula
Porque o vencedor/assassino e o assassino/vencedor são um só e mesmo homem
indivisível
Deveremos nós então das duas não fazer nenhuma
De modo que haja vitória/assassínio mas sem vencedor/assassino
Chamando-se o vencedor/assassino ninguém?
E o povo respondeu a uma só voz
(mas o pai do horácio guardou silêncio):
Eis o vencedor. O seu nome: Horatius.
Eis o assassino. O seu nome: Horatius.
Há muitos homens num só.
Um venceu por Roma num combate à espada.
Um outro matou a irmã
Sem necessidade. A cada um o que lhe é devido.
Ao vencedor os louros. Ao assassino o machado.
E o horácio foi coroado com os louros
E aquele que segurava os louros brandiu a espada
Com o braço estendido e honrou o vencedor
E os lictores depuseram
O molho de varas e machado e levantaram a espada
Duplamente ensanguentada por sangues diferentes
Que jazia na poeira e estenderam-na ao vencedor
E o horácio com a fronte coroada
Brandiu a espada de modo que a todos fosse visível
A duplamente ensanguentada por sangues diferentes
E aquele que segurava o machado depô-lo,
e os romanos todos
Brandiram cada um a sua espada durante o tempo de três palpitações
Com o braço estendido e honraram o vencedor.
E os lictores repuseram a espada
No cinturão, tiraram a espada
Do vencedor das mãos do assassino e atiraram-na
Para a poeira anterior e aquele que segurava o machado arrancou
Ao assassino os louros da fronte
Com que o vencedor tinha sido coroado e entregou-os
Na mão daquele que segurava os louros e lançou ao horácio
Por cima da cabeça o pano da cor da noite
Em que ele tinha sido condenado a entrar
Porque tinha morto um ser humano
Sem necessidade, e os romanos todos
Embainharam as espadas
Para que os fios estivessem todos resguardados
A fim de que as armas
Com que o vencedor fora honrado
Não participassem na execução do assassino. Mas as sentinelas
Nas quatro portas à espera do inimigo
Não embainharam as espadas
E os fios dos machados ficaram a descoberto
E a espada do vencedor, que jazia na poeira, ensanguentada.
E o pai do horácio disse:
Este é o meu último. Matai-me em seu lugar.
E o povo respondeu a uma só voz:
Nenhum homem é outro homem
E o horácio foi executado com o machado
E o sangue jorrou sobre a terra
E aquele que segurava os louros, de novo na mão
Os louros do vencedor, agora em pedaços
Porque tinham sido arrancados da fronte do assassino
Perguntou ao povo:
Que deverá acontecer ao cadáver do vencedor?
E o povo respondeu a uma só voz:
Que o cadáver do vencedor seja exposto
Sobre os escudos das tropas, sãs e salvas graças à sua espada.
E eles juntaram mais ou menos
O que naturalmente se não podia unir
A cabeça do assassino e o corpo do assassino
Separados um do outro pelo machado da justiça
Ambos ensanguentados para formar o cadáver do vencedor
Sobre os escudos das tropas, sãs e salvas graças à sua espada
Não prestando atenção ao sangue que corria pelos escudos
Não prestando atenção ao sangue que lhes corria pelas mãos, e enfiaram-lhe
Na fronte os louros despedaçados
E colocaram-lhe na mão de dedos crispados
Pelo último combate a sua espada ensanguentada cheia de poeira
E puseram-lhe por cima as espadas nuas em cruz
Significando que nada devia profanar o cadáver
Do horácio que vencera por Roma
Nem a chuva nem o tempo, nem a neve nem o esquecimento
E choraram o cadáver com o rosto coberto.
Mas as sentinelas nas quatro portas
À espera do inimigo
Não cobriram os seus rostos.
E aquele que segurava o machado, de novo na mão o machado da justiça
Onde o sangue do vencedor ainda não tinha secado
Perguntou ao povo:
Que deverá acontecer ao cadáver do assassino?
E o povo respondeu a uma só voz
(Mas o último horácio guardou silêncio):
Que o cadáver do assassino
Seja deitado aos cães
Para que eles o despedacem
De modo que nada reste dele
Que matou um ser humano
Sem necessidade.
E o último horácio, com as marcas do choro
No rosto, disse:
O vencedor está morto, o que não será esquecido
Enquanto Roma reinar sobre Alba.
Esquecei o assassino, como eu o esqueci
O primeiro a perder.
E de entre os romanos um respondeu-lhe:
Por mais tempo que Roma venha a reinar sobre Alba
Não será esquecida Roma nem o exemplo
Que ela deu ou não deu
Pesando nos pratos da balança os prós e os contras
Ou distinguindo muito claramente a culpa do mérito
Do autor indivisível de actos diversos
Temendo a verdade impura ou não a temendo
E o meio-exemplo não é um exemplo
Aquilo que não se realizou completamente até às últimas instâncias
Volta ao nada nas rédeas do tempo a passo de caranguejo.
E retiraram-se os louros ao vencedor
E de entre os romanos um inclinou-se
Diante do cadáver e disse:
Permite que te arranquemos da mão, vencedor,
A ti que já nada sentes
A espada que é precisa.
E de entre os romanos um outro cuspiu sobre o cadáver e disse:
Assassino, devolve a espada.
E a espada foi-lhe arrancada da mão
Porque esta na sua rigidez de morte
Tinha-se fechado sobre o punho da espada
De tal modo que foi preciso partir os dedos
Ao horácio, para que ele entregasse a espada
Com que tinha morto por Roma e uma vez
Não por Roma, uma vez ensanguentada em demasia
A fim de que outros fizessem dela um melhor uso
Dela que ele tinha usado bem, excepto uma vez.
E o cadáver do assassino, dividido pelo machado da justiça
Foi atirado aos cães, para que estes
O despedaçassem completamente, de modo que nada restasse dele
Que tinha morto um ser humano
Sem necessidade ou praticamente nada.
E de entre os romanos alguém perguntou aos outros:
Como deverá o horácio ser conhecido para a posteridade?
E o povo respondeu a uma só voz:
Ele passará a ser chamado vencedor de Alba
Ele passará a ser chamado assassino de sua irmã
De um só fôlego o seu mérito e a sua culpa.
E quem falar da sua culpa e do seu mérito não falar
Que viva como um cão entre os cães
E quem falar do seu mérito e não falar da sua culpa
Que viva também entre os cães.
Mas quem a um tempo falar da sua culpa
E noutro tempo falar do seu mérito
Dizendo a mesma boca coisas diferentes em tempos diversos
Ou coisas diversas para ouvidos diferentes
Que lhe seja arrancada a língua.
Pois as palavras têm de permanecer puras. Porque
Uma espada pode ser quebrada e um homem
Também pode ser quebrado, mas as palavras
Caem na engrenagem do mundo irrecuperáveis
Tornando as coisas reconhecíveis ou irreconhecíveis.
Mortal é para o homem o irreconhecível.
Assim, não temendo a verdade impura, eles estabeleceram
Enquanto aguardavam o inimigo, um exemplo provisório
De distinção pura, não dissimulando o resto
Que não desaparecera na imparável mudança
E voltaram cada um ao seu trabalho, segurando
A par da charrua, do martelo, da sovela, do lápis, a espada.


Heiner Müller, O Horácio, 1968, tradução de Anabela Mendes